O Que O Pássaro Me Ensinou


De uns meses pra cá tenho olhado mais para o céu.
Desses meses pra lá meu olhar era mais plano, cerviz endurecida pelo hábito.
Olho mais pela janela procurando a poesia de cada dia, escrita no céu sempre inédito; olho mais para as árvores sendo sopradas, por brisa ou ventania; olho mais para o céu dos pássaros e observo com mais vontade seu voo. Vê-los voando me faz lembrar, encantada, da fala do poeta quando diz que "Deus fez o céu para justificar os pássaros¹".
Dia desses, a caminho de mais um consultório, pus-me a observar os pássaros. À minha direita, um bando sobrevoava o mar, acho que todos em busca de comida ou de companhia. Mas, à minha esquerda, um único pássaro (com pleonasmo e tudo) sobrevoava fábricas e casas e avenida.
Fiquei pensando em seus voos. Fiquei pensando na liberdade deles. Lá em cima tudo é imensidão, e de lá, o nosso aqui também é muito mais amplo do que o que nós mesmos vemos em nosso 'estar'.
Como voam despreocupados! Como é leve seu voar!
O céu e o tempo, inteiros, lhes pertencem. Talvez por não saberem nomear ou cronometrar, como nós.
Aquele pássaro solitário sobrevoa, por alguns minutos, o espaço imediato acima de mim, aquela avenida cheia de carros. Imagino que, aos olhos dele, deve ser estranho ver passar tanta gente dentro dessas caixas coloridas e velozes de aço. Nós, lado de dentro, sentimos que estamos seguros. Nós, lado de dentro, sentimo-nos no controle. Se o pássaro nos observa, e se ele soubesse que nos sentimos assim, penso que ele riria. Livre é ele, afinal. Seguro é seu voo, afinal.
Nós somos como ampulhetas de aço transparente. Somos, ao mesmo tempo, parede que limita e areia que escorre.
Passamos a vida a ensaiar voos, voos que raramente alçamos. Somos pássaros que comeram da árvore proibida. Pássaros que conhecem o bem e o mal. Pássaros que sabem nomear e cronometrar.
Pássaros presos que aprenderam a aprisionar, talvez por vingança ou por medo da solidão, ou sabe-se lá por que outros motivos.
Aquele não, aquele é livre. Ele é só areia que o vento gentilmente sopra. É grão com asas. O mundo inteiro é dele, não precisa de brevês pra voar 'nosso céu' ou de permissão pra pisar 'nosso chão'. Olho de minha caixa de aço espremida entre as outras e lá está ele, sobrevoando fábricas e casas, morros e mar. Pago meu pedágio pra poder ir adiante e lá está ele, pisando tetos, galhos, águas e avenida.
Não faz ideia de que, de minha caixa colorida, penso tudo isso sobre ele. E nem quer saber. Minhas ponderações a seu respeito não pesam-lhe o voo, não limitam seu mundo - vasto mundo. Talvez nossos voos não sejam mais leves, nem nosso território mais amplo porque a gente sempre quer saber, e porque faz mais diferença o que os outros acham de nós do que o que nós mesmos sabemos.
Talvez a gente gaste tempo e energia demais tentando entender e isso nos prive da leveza que, no fundo, almejamos.
Queremos ser livres, sonhamos levezas, mas nosso peito também virou aço. Nos assemelhamos às nossas caixas coloridas. Funcionamos, não livres, como todas as máquinas.
Estou sonhando com o dia em que nós, humanos, seremos livres. E, em sendo livres, poderemos pisar qualquer chão, voar qualquer céu, habitar um ninho sem temer a perda do resto do mundo, sermos indivíduos mesmo quando em bando.
Quando formos livres só a fome nos dirá pra onde ir, não o simples desejo. Quando formos livres nos juntaremos aos outros, e quanto mais livres eles forem, mais felizes seremos juntos. Quando formos livres a solidão não será um peso. Seremos grãos de areia com asas.
Aquele pássaro me ensinou muito!








*1. Mia Couto, em "Estórias Abensonhadas"

Comentários

  1. Uauuuu! Como não chorar?? Você arrasa! Como falei outro dia, é tudo inspiração do Espírito Santo. By mano Laranjinha.

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