Pequena Mala de Amanhecer

Ela cresceu ouvindo histórias de gente que perdeu tudo e recomeçou.
Leu uma vez que 'nunca se é velho demais pra sonhar' e fazer acontecer uma vida diferente.
Conviveu com pessoas das quais perdeu-se e, em reencontrando-as, já eram outras; reiniciavam-se sempre. E ela acreditava nisso.
Acreditava que a vida adulta era uma continuidade da sua infância, infância em que cada dia podia ser a adulta que quisesse: médica na segunda-feira, jogadora profissional de 'taco' na terça-feira, campeã de pique-esconde na quarta-feira, escritora e conferencista com microfone de controle remoto na quinta-feira, musicista na sexta-feira, coveira de formigas no sábado e santa no domingo.
(Reiniciar é tão fácil na infância; talvez por isso crianças não sofram os términos desde antes de acontecerem, como adultos fazem quando conseguem começar algo. O dia acaba, mas sempre tem um novinho, cheio de possibilidades e belezas).
Pra ela, o mundo todo, com suas coisas todas, era seu; e todas as pessoas eram parte sua - amigos que nunca iriam embora; nem passava por sua cabeça que o mundo não fosse deles também. Era tudo tão 'de todos' em seu pequeno coração, que nem pronomes possessivos eram necessários. Ser era natural; Ser com os outros. E amanhecia, ela e todos - inteiramente novos. Não levava nada que não eles mesmos pra o dia novo, e iam despidos de ontens. Nenhum fracasso durava mais que seu próprio dia. O sol se punha inclusive sobre os fracassos e sobre as lágrimas, que chegavam a ser preciosas, de tão raras. Dor então, só durava até surgir um beijo curador (de um daqueles adultos que sabiam tudo de dor). E, em nascendo o sol, era tudo novo de novo.
Mas ela cresceu e descobriu um mundo totalmente estranho àquele todo seu da meninice.
Nesse mundo novo não podia mais decidir ser uma coisa cada dia, amanheciam as mesmas anoitecidas - ela e a vida. Observou que a maioria das pessoas acordam como se tivessem mais pesadelos do que sonhos bons, inclusive ela quase não sonha mais - dormindo ou acordada. Descobriu que um monte de gente não começa coisas por medo de possíveis términos. Percebeu que o dia nunca acaba totalmente, que o amanhã sempre é continuidade do hoje. Com lágrimas nos olhos assiste a tantos dos seus 'indo de si', porque as lágrimas antes preciosas - de raras, são agora até constrangedoras - de tantas. Assustou-se por quase só existirem pronomes possessivos - ainda são estranhos a seus ouvidos, fazem parecer que não tem mais nada que seja 'de todos'. E a dor... essa precisa de bem mais que beijos curadores, precisa de tempo e paciência. Ah, descobriu também que os adultos que ela achava que entendiam tudo da dor das crianças e (dos outros adultos), não entendem nem mesmo as suas próprias. Descobriu quando tentou curar com beijo uma das suas e, pela primeira vez, não deu certo.

Ser não é mais tão natural; ser com os outros então!
O sol nasce e não é mais tudo tão novo. 
Diante de tudo isso ela desaprendeu recomeços, agora só sabe continuar...


De sua janela fria, olhar fito num céu cinza sem pássaros, ocorre-lhe que é possível que a vida sempre tenha sido continuidade, mesmo quando ela sabia viver um dia novo por dia. É que a mala era pequena e ela não precisava de muito, deixava só as levezas anoitecidas amanhecerem com ela. Talvez ela só tenha desaprendido a fazer a mala. Talvez tenha esquecido quais coisas são, de fato, essenciais. Talvez por isso carregue tanto fracasso e angústia pros seus amanhãs e deixe tantas pessoas (partes suas) nos ontens.
Talvez continuar não seja tão ruim, desde que ela reaprenda a fazer a pequena mala de amanhecer...
Talvez ainda seja possível renascer com as manhãs pra ser a menina das levezas no mundo de gente grande.

Um vento fresco trouxe da meninice uma lembrança feliz, e ela aquiesceu divertindo-se:
- Escritora na quinta-feira!

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