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Mostrando postagens de 2018

Shabat

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O dia corre do lado de fora.  Máquina de lavar parece adivinhar que o sol já chegou com cara de 'indo'. Bate histérica as roupas brancas, antes que o dia fique cinza. O rapaz só teve tempo de tomar um café e sair correndo pra o compromisso. O relógio o encarava impaciente, como um inspetor de escola ao aluno que dormiu demais. Até os pássaros hoje estão cantando como 'magicicadas' (aquelas cigarras norte-americanas que saem juntas do chão pra alguns dias de canto ensurdecedor, acasalamento e postura de ovos). Estão esbaforidos e estridentes hoje os pássaros. Devem ter passado as férias de verão com as magicicadas.  Há também martelo e furadeira trabalhando nas paredes vizinhas que fazem nossa divisão. No caso, os homens é que encaram impacientes o relógio. Os homens querem terminar logo o trabalho e, na velocidade que vão pra deixar pra trás e dar tchau pra o relógio, até dá pra confundi-los com suas máquinas.  Também têm crianças correndo

Pequena Mala de Amanhecer

Ela cresceu ouvindo histórias de gente que perdeu tudo e recomeçou. Leu uma vez que 'nunca se é velho demais pra sonhar' e fazer acontecer uma vida diferente. Conviveu com pessoas das quais perdeu-se e, em reencontrando-as, já eram outras; reiniciavam-se sempre. E ela acreditava nisso. Acreditava que a vida adulta era uma continuidade da sua infância, infância em que cada dia podia ser a adulta que quisesse: médica na segunda-feira, jogadora profissional de 'taco' na terça-feira, campeã de pique-esconde na quarta-feira, escritora e conferencista com microfone de controle remoto na quinta-feira, musicista na sexta-feira, coveira de formigas no sábado e santa no domingo. (Reiniciar é tão fácil na infância; talvez por isso crianças não sofram os términos desde antes de acontecerem, como adultos fazem quando conseguem começar algo. O dia acaba, mas sempre tem um novinho, cheio de possibilidades e belezas). Pra ela, o mundo todo, com suas coisas todas, era seu; e todas

Do Parto ou Do Partir

E esta dor não física que sinto desde que me entendo por gente? Esse incômodo agudo - essa 'dor fina', como diria vovó - donde vem e pra onde quer ir, que não sai do lugar? Há dias em que não penso nela. Mas deixar de pensar não impede o sentir. São dias em que sou toda sentir. Mas, sempre por distração, não por ser capaz de decidir qualquer coisa. De onde vem esse desejo secreto de querer que as pessoas compreendam o que não soubemos explicar, porque nem a gente mesmo entendeu? Como explicar o que não tem nome? Fico perdida, prefiro calar ou falar do que sinto menos, mas sei nomear. De onde vem essa calma súbita sem precedente após? Não houve um fim de dor, nem um fim de nada, pra essa calma após. Ficou confuso isso? Achei que sim. O após está no meio - entre o fim e a calma. Ficou claro? Porque não gosto de imaginar uma dança em que a calma fique espremida entre a dor e o após. Gosto quando ela é a dama que conduz a dança, podendo inclusive abandoná-la no meio da música, dis

Refluxos / Anti-Verdade Paliativa

Há pessoas (não sei se muitas) pra quem falar/ser verdade não é mais uma quase angústia de morte... Corajosas - Assustadoras - Subversivas. Como a gente se habitua a mentir - desde a presença (ou será ausência?) da mãe diante de suas visitas indesejadas, até nosso sentir e nossos quereres já de adultos - também é possível habituarmo-nos à verdade, suponho. A maior diferença, talvez, esteja na dor que a verdade pode causar no ventre, no estômago, na garganta. A dor de antes dela virar verbo. Pra maioria de nós, mentir já é quase natural. Parece que nascemos fazendo isso em vez de chorando. A gente aprendeu tão cedo, que nossa flexibilidade e inocência infantis nem deixaram doer. Claro que não era mentira aquele primeiro choro, foi depois dele que aprendemos a mentir. Antes de aprendermos a mentir o choro tivemos que aprender a mentir o riso.  É que num mundo de mentira, não há como a verdade não doer. Ela dói. Dói no estômago, dói na garganta, dói na boca de quem diz. Por is

Reencontros, Úteros de Renascer

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O ano finda com reencontros. Reencontrar quem a gente ama nos ajuda a lembrarmo-nos quem a gente, de fato, é. Reencontrar pessoas que fazem parte da constituição de nossa alma é uma volta a nós mesmos. Pois, se tem uma coisa que a vida sabe fazer bem, é levar-nos para longe de nós mesmos. No disparar dos ponteiros, a gente corre tanto atrás do que nem sabemos bem, que deixamos a nós próprios lá no passado, no lugar em que o chronos começou a ditar o ritmo da vida. Porque a alma não mede a vida com ponteiros e números, mas com momentos. A alma sente, por isso avança. É pelo sentir que ela sai do lugar. Não de segundo em segundo, mas de sentir em sentir. Por quê a gente se sente em casa dentro dos abraços que a distância acumulou? Penso que é porque a alma mora onde o sentir é mútuo. A alma sabe, embora por vezes prefira ignorar, que deve lançar alicerces ou ancorar somente onde há verdade. Há encontros de alma que se tornam verdadeiros marcos de nós

Sonhos em Agualusa

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Leio Agualusa* e termino com vontade de continuar.  Há autores  que não queremos largar mais. Um livro inteiro sobre sonhos. Sonhos que cada um tem e que, no fim, todos sonham juntos. Pus-me a pensar a respeito... Não entendo muito de sonhos e entendo só um pouco de  realidade, vivo quase sempre sem entendê-la o suficiente. Mas falar de sonho pra mim é coisa difícil, mais do que de vida real. Agualusa diz que ‘os sonhos são o que temos de mais íntimo’ e que ‘a intimidade é assustadora.’ Talvez seja isso, talvez por isso eu não sonhe tanto. Acho que a gente foge é da realidade quando vive sonhando. Mas não tem jeito, ela sabe impor-se. Tarefa difícil deve ser essa de manter-se sonhador. A vida não desiste de tentar exaurir os sonhos de quem sonha. Leio livros para aprender a pensar a vida de um jeito mais leve. Ela é, por vezes, ácida e insustentável. Leio para olhá-la e não ver dela apenas nudez e crueza. Leio para ganhar olhos que

Sobre Adiamentos

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Há que se ter cuidado com os adiamentos. Há os necessários, mas costumamos confundi-los todos. Por vezes não raras maquiamos o hoje na ilusão de que o rosto real não terá feito rugas quando descoberto amanhã. Dores são inadiáveis. Não há verniz que esconda para sempre as marcas da dor que nos negamos a tratar hoje. A dor negligenciada no hoje, por mais simples que pareça, pode tornar-se intratável num amanhã que parecerá um quartinho de bagunça que não comporta mais tantos adiamentos. Fiquei quase 4 horas no pátio de espera, um pátio semi coberto, (metade sombra, metade luz). Eu também não era inteira sombra, nem inteira luz. A luz pura consegue até cegar. Mudando as doses a luz é multi útil. Li um livro inteiro sob a luz daquele sol. Sentou-se ao meu lado uma velhinha de 99 anos, o que ela fez questão de contar-me orgulhosa. A iminente, e eminente, centenária tem orgulho dos anos que acumula e até dos danos que a trouxeram ao hospital pra trocar curativos diariament

Grãos de Terra, Partículas de Céu

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Dia desses dizíamos em uma conversa que nosso corpo, quando  cansado ou doente, pende para baixo. O pó que somos quer voltar  para a terra de onde veio.  Hoje por várias vezes desejei, ou o pó de  mim desejou, abraçar-me pela raiz. Quis voltar ao estado de  semente de terra, grão de areia por germinar. Falávamos sobre a importância de diminuirmos o ritmo a fim de não deixarmos os outros para trás. Hoje penso que, igualmente importante na jornada, é ter (e ser) gente que estimule o outro a ir além do que acredita conseguir. Gente que não alimenta em nós a fome de voltarmos ao pó. Gente que sabe e nos mostra quantas vezes forem necessárias que dentro desse corpo que, exausto, pende pra o chão, há um espírito livre que existe para voar. Um espírito que pende para o alto e que só descansa e se refaz nas  asas do vento. Somos grão, mas somos também ar. Sementes de vento, partículas  de céu. Devemos, claro, conhecer nossos próprios limites; afinal, descansar