Shabat


O dia corre do lado de fora. 
Máquina de lavar parece adivinhar que o sol já chegou com cara de 'indo'. Bate histérica as roupas brancas, antes que o dia fique cinza.
O rapaz só teve tempo de tomar um café e sair correndo pra o compromisso. O relógio o encarava impaciente, como um inspetor de escola ao aluno que dormiu demais.
Até os pássaros hoje estão cantando como 'magicicadas' (aquelas cigarras norte-americanas que saem juntas do chão pra alguns dias de canto ensurdecedor, acasalamento e postura de ovos). Estão esbaforidos e estridentes hoje os pássaros. Devem ter passado as férias de verão com as magicicadas. 
Há também martelo e furadeira trabalhando nas paredes vizinhas que fazem nossa divisão. No caso, os homens é que encaram impacientes o relógio. Os homens querem terminar logo o trabalho e, na velocidade que vão pra deixar pra trás e dar tchau pra o relógio, até dá pra confundi-los com suas máquinas. 
Também têm crianças correndo e jogando bola. Ouço daqui. Elas ignoram o relógio, e parece que eles retribuem deixando-as em paz. Parece hora cada minuto desses meninos e, ao mesmo tempo, parece segundo apenas. É muita vida pra ser pouca, é muita vida pra ser demais. É uma 'inundação insuficiente' de vida. Uma vida tão leve que só param porque o corpo não dá conta de tanta leveza, precisa dormir pra descansar. E a leveza inunda-lhes até o sono, e dormem como quem ainda brincasse chutando bolas feitas de nuvens no sonho.Os adultos querem ser livres assim, por isso correm tanto. Correm pra que a sexta-feira chegue logo e eles possam ignorar o 'inspetor de escola' que prendem aos pulsos, e que, às vezes, quase chegam a confundir com algemas (só que menos frias e desconfortáveis, dependendo do ponto de vista). 
Aí chega o desejado 'shabat', aqueles dias sem relógio em que tudo parece brincadeira de correr no quintal. O homem-máquina volta a ser gente, o café é completo e demorado. Até os pássaros cantarolam como se tivessem ouvido Bach. 
Nos 'dias sem relógio', meninos e homens identificam-se. O menino acredita, olhando pra o homem leve e divertido daquele jeito, que adultecer não é só ser máquina de olhar no relógio, correr e fazer dinheiro. E o homem acredita, olhando pra o menino que nem acordado e de pé no chão parece abandonar o sonho das alturas, que a liberdade é mais um estado de ser do que de estar. E nesse shabat, homem não tem medo de ser menino e menino não tem medo de ser homem, porque naquele encontro inunda-lhes a certeza de que a liberdade pode morar tanto na grandeza dos meninos pequenos, quanto na pequenez dos homens grandes. Menino e homem, chutando bola de nuvem nas alturas...
De repente, liberdade desejada e acolhida funde, como que por milagre, homem e menino. Renascem um híbrido: corpo de homem, coração de menino. E vão ser um só na vida - segunda a segunda podendo ser livre. Pulso esquerdo - relógio, braço direito - bola de nuvem. 

Agora é sempre shabat do lado de dentro!




*Foto de Marcelo Calegare - "Andando nas Nuvens", Salar de Uyuni (Sul da Bolívia)*

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