Nos dois lados do vidro

Estou pouco à vontade agora. Não acho que seja hora para escrever. A hora é tão fria quanto os meios que devem ser utilizados. Me vejo numa das mesas da repartição, sou a redatora - a única duma imensa revista chamada "Minha Vida, minhas Coisas". Ninguém especificou minha área de atuação, ninguém me diz o tema assim que chego aqui todas as manhãs. Posso escrever sobre o que quiser. Essa liberdade é que me deixa meio perdida. Com tantas possibilidades minhas retinas embaçam e acabo não vendo nenhuma suficientemente nítida para ser descrita. Em outra mesa há alguém. Exatamente na frente da minha. Estamos separados um do outro por uma fina camada de vidro liso. Vejo claramente a pessoa. Parece um chefe, um chefe muito exigente. Alto, delgado e bem sério. Ele olha fixamente pra mim enquanto escrevo - no lugar das pupilas vejo duas suásticas, das de Hitler. Tenho que terminar logo. Tenho que apresentar algo depressa... Mas...espera um pouco! Essa repartição é interna. Essas pessoas são todas eu. Quando me sento aqui esqueço que não há campos de concentração no meu País. Não haverá holocausto. Não preciso de estrelas amarelas em meu uniforme. Nem tenho um uniforme! Esse homem só existe na minha imaginação. Ainda assim me incomoda, me inquieta. Imaginando-o ali na frente esqueço que isso não é obrigatório. Caso não consiga, não haverá punição! Minha "imaginação" me faz ignorar o fato de que isso não é um periódico. Ainda não sou escritora, só uma estagiária. Sou ainda uma "escrevinhadora" pretensiosa. Sou eu dos dois lados do vidro - eu de frente para mim. Não haverá holocausto. Jamais haverá uniformes, muito menos com estrelas...   A vista não está mais tão embaçada agora, enxergo claramente a possibilidade de hoje!

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