Grãos de Terra, Partículas de Céu


Dia desses dizíamos em uma conversa que nosso corpo,
quando cansado ou doente, pende para baixo.
O pó que somos quer voltar para a terra de onde veio. 
Hoje por várias vezes desejei, ou o pó de mim desejou, abraçar-me pela raiz.
Quis voltar ao estado de semente de terra, grão de areia por germinar.
Falávamos sobre a importância de diminuirmos o ritmo
a fim de não deixarmos os outros para trás. Hoje penso que,
igualmente importante na jornada, é ter (e ser) gente que estimule o
outro a ir além do que acredita conseguir. Gente que não alimenta
em nós a fome de voltarmos ao pó. Gente que sabe e nos mostra
quantas vezes forem necessárias que dentro desse corpo que,
exausto, pende pra o chão, há um espírito livre que existe para voar.
Um espírito que pende para o alto e que só descansa e se refaz nas asas do vento.
Somos grão, mas somos também ar. Sementes de vento, partículas de céu.
Devemos, claro, conhecer nossos próprios limites; afinal, descansar é sagrado.
Não pode ser longeva a alma que negligencia o shabat.
Até Deus descansou; devia estar querendo ensinar-nos um segredo
para a eternidade. Mas também devemos lembrar que ainda não
conhecemos o quão alto podemos ir. O desconhecido é assustador
e, talvez por isso, escolhamos viver grande parte da vida presos
pelos calcanhares por correntes invisíveis. As correntes invisíveis
do medo nos dão a ilusão de um teto a nos proteger, que mais nos
limitam que protegem. Partícula de céu sob teto de medo morre
sufocada. Evapora, deixa de ser, no esforço vão de subir ou no
lamento do não tentar. Fica seco, resume-se à poeira, esquecido sobre móvel velho.
Enquanto escrevia pensava em uma amiga, a M****, com quem
conversava dia desses. Trabalhamos juntas durante um tempo e
lembro que, de onde a via fazendo seu trabalho, a admirava e
pensava a seu respeito: ‘essa garota é daquelas poucas pessoas
que a gente olha e tem certeza de que podem fazer e ser o que
quiserem na vida’. Claramente semente de vento, partícula de
céu. Nós, livres no salão, éramos mais prisioneiros e apegados
ao pó de nós do que ela, presa atrás daqueles vidros.
Quando andava na rua, misturada a tantos outros pós,
parecia que ia voar a qualquer momento.
Andava no asfalto quente como que sobre nuvens macias.
Partícula de céu no chão. Talvez ela não saiba que pode voar tão alto,
mas quando anda faz parecer que sabe.
Sente pesado, mas pisa macio como quem respeita o chão de onde veio.
Não esquece que também é chão. Não esquece que é grão, de terra e de vento.
A vida acontece apresentando-nos pessoas que, sem saber, nos facilitam a existência.
Assim, seguimos juntos quebrando correntes invisíveis.



“Até que o pó volte à terra, e o espírito volte a Deus, que o
deu.” (Eclesiastes 12.7)



*Imagem da série 'Poussières d'étoiles" (Stardust), de Ludovic Florent

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